quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Herman, Harry, o Lobo e Eu

Era uma vez um certo Harry. Andava sobre duas pernas, usava roupas e era homem, mas não obstante era também um Lobo. Havia aprendido uma boa parte de tudo quanto as pessoas de bom entendimento podem aprender e era bastante ponderado. O que não havia aprendido, entretanto, era o seguinte: estar contente consigo e com sua própria vida. Era incapaz disso, daí ser um homem descontente. Isso provinha, decerto, do fato de saber que, no fundo de seu coração, sabia sempre (ou julgava saber) que não era realmente um homem e sim um Lobo. Tinha, portanto, duas naturezas, uma de homem e outra de lobo; tal era o seu destino, e nem por isso tão singular e raro.
 
A esse propósito há que se acrescentar: muitas pessoas há que se assemelham a Harry. Essas pessoas têm duas almas, dois seres em seu interior; há neles uma parte divina e uma satânica, há sangue materno e paterno, há capacidade para a ventura e para a desgraça, tão contrapostas e hostis como eram o lobo e o homem dento de Harry. E esses homens, para os quais a vida não oferece repouso, experimentam às vezes, em seus momentos de felicidade, tanta força e tão indizível beleza, a espuma do instante de ventura emerge às vezes tão alta e deslumbradora sobre o mar da dor, que sua luz, espargindo radiância, vai atingir a outros com o seu encantamento. A isto se devem, a essa preciosa e momentânea espuma do mar do sofrimento, todas aquelas obras artísticas em que o homem solitário e sofredor se eleva por uma hora tão alto sobre o seu próprio destino, que sua felicidade brilha como uma estrela, e parecem a todos os que a vêem como algo eterno e como se fosse seu próprio sonho de ventura. Todas essas pessoas, sejam quais forem seus atos e obras, não têm propriamente uma vida, ou seja, sua vida carece de essência e de forma, não são heróis, nem artistas, nem pensadores da maneira como os demais homens são juízes, doutores, sapateiros ou mestres; sua existência é um momento de fluxo e refluxo, está infeliz e dolorosamente partida e é sinistra e insensata, se não estivermos propensos a ver um sentido precisamente naqueles raros acontecimentos, ações, pensamentos e obras que brilham às vezes sobre o caos de semelhante vida. Entre os homens dessa espécie surgiu o perigoso e terrível pensamento de que, talvez, toda a vida do homem não passa de um espantoso erro, de um abandono brutal da mãe primeva, um cruel e selvagem intento frustrado da Natureza. Mas entre eles surgiu também a ideia de que o homem talvez não seja apenas um animal dotado de razão, mas o filho de Deus destinado à imortalidade.
 
O Lobo da Estepe
Herman Hesse

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Carta aberta das Mães pela Igualdade

Andando por aí, recebi esta carta e resolvi publicar:
 
Nós, Mães pela Igualdade, gostaríamos de pedir dois minutos de silêncio e atenção para refletirmos sobre o Brasil que queremos. Dois minutos para lembrar nossos filhos e filhas. Durantes esses minutos, busque em suas memórias o momento em que viram pela primeira vez o bebê tão esperado e desejado com amor por sua família. Os pequenos olhos, a boca, os pezinhos. Lembre-se daquele instante mágico em que, após meses de espera, a pequenina pessoa esteve em seus braços.
 
Lembram-se do balbuciar das primeiras palavras e dos primeiros passos? O primeiro dia na escola; as festas de aniversário; as noites mal dormidas quando adoeciam; o carinho com que prepararam os presentes na escola, no dia das mães ou no dias dos pais?
 
Lembram-se da janelinha no sorriso banguela? Mal nos damos conta e as nossas crianças crescem e passam a ter vida social própria: os piqueniques, os churrascos, tardes no shopping, as baladas, a faculdade ou a escola noturna. Jovens, lindos, sensíveis, solidários, cheios de vida e de alegria.
 
Agora imaginem que um dia, voltando pra casa, seu filho ou filha é vítima de um ataque covarde na calçada, sem motivo nenhum além de ser quem é. Você pode ouvir seus gritos chamando "Mãe, me ajuda!", mas aquelas pessoas não param de bater, chutar, pisar e escarnecer; outras pessoas passam ao lado e nada fazem.
 
Sua criança grita por ajuda enquanto sua pele é rasgada, seus dentes arrebentados, seus olhos feridos, seus ossos quebrados até a morte, banhada em sangue, e você onipotente do outro lado da rua, ou mesmo em outra cidade. Aquele rostinho de outrora, agora deformado pelas pancadas. Essa imagem não sai da nossa cabeça. O sentimento é de desespero, angústia e vazio absoluto.
 
Respirem. Não é fácil passar por isso, mas essa violência é fato e acontece todos os dias em nosso país. Nossas filhas e filhos têm sido agredidos, torturados e mortos. Nossas "crianças" tem sido humilhadas, discriminadas, ofendidas, xingadas nas ruas simplesmente porque têm orientação sexual ou identidade de gênero diferente da maioria. Não escolheram ser lésbicas, gays, transexuais, travestis ou bissexuais, não se trata de uma opção. Simplesmente são assim: pessoas corajosas, dignas e honradas que assumem quem são, não sabem ser de outra forma e não querem viver atrás de máscaras.
 
As palavras de Marlene Xavier, uma Mãe pela Igualdade, resume com precisão o resultado extremo da homofobia descontrolada no Brasil: "Quando perdemos um filho, nos tornamos eternamente mutiladas e a nossa imagem é o reflexo da dor e da saudade, que serão nossas eternas companheiras". Algumas de nós carregamos no peito essa cicatriz, por isso pedimos que cada um e cada uma de vocês que estão lendo esta carta se pergunte: "E se meu filho ou filha fosse gay, lésbica, travesti ou transexual"?
 
Compreenderiam então a insegurança em que nós, mães de homossexuais e pessoas trans, vivemos cada vez que nossos filhos e filhas saem às ruas, viajam, vão ao cinema ou à escola. E, se amam seus filhos como nós amamos os nossos, entenderão a dor de uma mãe que perdeu seu rebento para a homofobia.
 
 
Mães pela Igualdade é um grupo de mães de todos os cantos do Brasil que estão unindo suas forças para dar um recado claro contra a discriminação, a violência e a homofobia crescentes e mostrar ao país que a igualdade é um valor familiar. veja o site
 
 

domingo, 15 de dezembro de 2013

Eu, a Psicologia, as Crianças e o Estresse (reproduzindo)

Estresse infantil

Num mundo tão agitado e concorrido, parece que a infância não tem mais lugar. É tanto o desejo de que os filhos cresçam rápido, aprendam mais rápido ainda, que as despreocupações infantis deram lugar à imediata ocupação de tempo com coisas que não deveriam fazer parte de seu universo.

Pais até fazem agenda para que não se percam com tantos afazeres e os mais diversos. A pressão é intensa sobre os pequenos ombros: tem que ser o primeiro da classe e obter sucesso em todas as atividades em que foram inscritos. Tudo muito precoce. As crianças se veem numa corrida contra o tempo como se isso pudesse garantir um futuro bem sucedido ou promissor.

E como são dependentes de seus pais, física e emocionalmente, preocupam-se em atender a todas as expectativas para não desapontá-los e perder o amor deles. Com isso, as necessidades infantis são postas de lado para que assumam o que lhes foi imposto.

Mas há um preço a se pagar pelo caminho que se decidiu seguir e, obviamente, será cobrado mais tarde e, muitas vezes, mais cedo do que se espera.

É o estresse infantil, que gera uma tensão tão extrema, insuportável mesmo, acompanhada de reações orgânicas como excesso de ansiedade junto com taquicardia, vômitos, diarreias, dores, agressividade, perda de ou sono agitado, doenças respiratórias, enfim. A criança sente como se sua segurança estivesse ameaçada. E de fato está.

Além do estresse infantil poder originar-se das altas cobranças, principalmente aquelas em que a criança ainda não se sente capaz de atingir o fim desejado e esperado, pode, inclusive, originar-se por brigas familiares e separações, abusos e violências contra ela, mudanças de vida, de casa, de escola e outras tantas, quando não foi bem preparada para poder compreender e aceitar o que vai perder. Não se pode esquecer que toda mudança envolve perdas e ganhos.

São muitos os eventos que podem provocar o estresse infantil, por isso é fundamental que os pais acompanhem seus filhos de perto, fiquem atentos a cada mudança de humor, de comportamento e mesmo de saúde sem motivo aparente, pois pode ser sinal de estresse.

Cada criança é única e o limite de tolerância e o ritmo de aprendizagem são diferentes para cada uma e deveriam ser respeitados.

Na verdade, o que ela deseja é brincar e desfrutar a infância a que tem direito. É muito triste ouvir um adulto dizer que muito cedo teve que assumir responsabilidades, que não teve infância por não ter sido permitido ou por não ter tido outra opção.

Não se pode pular uma fase de vida, pois mais tarde ela retorna. São os adultos infantilizados, que se "esqueceram" de crescer ou crianças atuando como se fossem adultos, tomando decisões que deveriam, via de regra, serem tomadas por adultos.

A criança aprende brincando sozinha ou com seus pares, como também só observando, pois é através da imitação que se dá a maior aprendizagem infantil.

Cabe aos adultos responsáveis refletirem profundamente se não estão ocupando o tempo livre de seus filhos para se verem livres deles e poderem, eles mesmos, desfrutarem seu próprio tempo livre sem preocupação ou interrupção.

Ana Maria Morateli da Silva Rico
Psicóloga Clínica

domingo, 27 de outubro de 2013

Eu, o lixo, os livros e o mar


Minha experiência como catador de livros nos lixos me fez gostar de ler. Ou seria o contrário? não sei. Importa é que eu os catava. Saía de casa, minha mãe não sabia, não aprovava, e andava por ali, de olho em amontoados de papel. Revirava-os, à procura de um livro, revista, gibi, o que fosse. Lógico que os encontrava em mau estado. Levava-os pra casa, refazia-os, botava papelão e cola na capa, punha-os para secar ao sol e era assim, lia-os.
 
Uma vez achei a metade de um livro. Li e reli. Era uma história empolgante, eu queria muito saber como acabava, mas não consegui achar a outra metade, apesar de ter voltado àquele lixo algumas vezes. Guardei o desejo curioso de saber o fim da história e era tanto o desejo que até cheguei a sonhar com ela. Outras vezes repensei a tal história, imaginei vários finais, mas nunca cheguei a conhecê-la de fato.

Por algum motivo que talvez a Psicologia explique, esqueci nome, título e conteúdo do livro. Se lembrasse, poderia procurá-lo num dos sebos que costumo visitar, mas não lembro. Era um livro bom. E um livro bom é aquele que provoca desejo de ler mais e que nos faz sonhar, ir embora, viajar. Livro bom é o livro que nos faz brincar, tentar adivinhar o rumo da história, após ler cada página. Era assim que eu gostava de brincar, ia imaginando prováveis finais. Nunca acertava, claro, mas brincava disso.
 
Um dia achei um outro livro e na capa estava escrito: Física. Imaginei que se tratasse de Educação Física e me empolguei, achando que com ele eu aprenderia alguns exercícios que me ajudariam a ficar mais fortinho, crescer, deixar de ser baixinho, meu pesadelo da época. Mas não era nada disso, o conteúdo mais parecia matemática, cheio de fórmulas que eu não entendia. Guardei-o na minha tábua-pregada-na-parede-que-eu-chamava-de-estante, achando que alguém tinha errado ao colocar o nome Física naquela capa. Permaneceu-me incógnito por muito tempo e no meu julgamento, aquele não era um livro bom.
 
Um livro bom deveria ter figuras, mas não muitas. A Bíblia, por exemplo, tinha histórias fantásticas, mas lhe faltavam figuras e por isso era quase um livro bom. Hoje, um livro bom é aquele que muda de cor. Você o compra sem riscos, mas vai lendo, vai pintando, vai lendo, vai pintando, assinalando, fazendo marcas, comentários paralelos e... as páginas vão mudando de cor porque cada frase, cada sentença, cada ideia que surge, à medida que nos surpreende sentimos a necessidade de deixá-la marcada, em destaque.
 
O diálogo que acontece entre você e o livro é tão rico, tão prazeroso, que ele acaba todo pintado, todo anotado, cheio das frases suas, entremeadas nas frases dele. Até dá vontade de conhecer o autor, sentar do lado, segurar sua mão, falar da emoção e do aprendizado, agradecer pelo prazer, divagar com ele sobre ideias afins e das que discordamos, enfim.
 
Como se pode dizer que alguém escreve para si, que a presença, ainda ausência, do leitor não está influenciando? É impossível que ele não tenha pensado em mim, no que me causou, na hora de escolher esta, e não aquela palavra; esta, e não aquela outra sequência para as ideias; este, e não aquele outro jeito de escrever. Mentira, claro que ele pensava em mim, leitor, e no que me iria propor.
 
Pensar nesse livro-autor-livro que nos provoca, faz-me lembrar de um amigo querido, que também aprecia a leitura. Ele me contou que desde pequeno encontrava em livros descrições de como era o mar: grande, imenso, infinito, lar de baleias e tubarões. Mas uma descrição sempre lhe chamou a atenção: o mar era azul. Em todos os seus sonhos o mar era de um azul lindo, indescritível, um azul-mar. Meu amigo cresceu e um dia, quase garoto esteve numa praia, pela primeira vez. Sentado, pôs-se a observar e por muito tempo esperou o momento mágico em que aquelas águas verdes se transformariam no azul-mar descrito nos livros e com o qual tanto sonhou.

Livro bom tem história e tem também a sua própria história. Uma vez emprestei um livro e ele me voltou com um banho de café, na capa. A pessoa a quem o emprestei quis devolver-me um livro novo, sob mil desculpas, mas eu disse não. Eu quero livros assim, com histórias e com a sua própria história de capa encafezada, páginas amareladas, riscadas, rabiscadas, pintadas, cheirinho de mofo, relíquias encontradas em livrarias, no lixo, nas praças, na vida.

 

 
 
 
 
 

domingo, 7 de julho de 2013

Eu, a Escova Usada, o Sapato Velho e a Roupa Nova

Um dia desses comprei uma nova escova de dentes, atentando para uma recomendação dos entendidos em dentição e escovação. A outra já estava velhinha e desgastada. Na hora da substituição, no portaescovas, eis-me num dilema: por um motivo que ainda não sei, não tive coragem de fazer a substituição e jogar a escova velha fora.

Dei-me conta de que não é justo, depois do tanto que ela me serviu, decretar-lhe o fim e a morte, como se fosse o dono do mundo ou um deus que descarta, quando não mais lhe serve. Olhei-a e a imaginei pensando e questionando o fato de ser tratada assim, como se nada significasse. Não era revolta e nem resignação, não faz parte do mundo das escovas. Era apenas um olho no olho, ou dente no dente, um convite para uma reflexão final.
  Para ser fabricada, a escova passou por processos dolorosos como fogo e prensa. Foi manuseada, encaixada, transportada e exposta numa prateleira para um dia cair em minhas mãos e em minha boca. Serviu-me tão bem.

Mas guardar escovas velhas deve ser um hábito, no mínimo, estranho. Não conheço ninguém que o faça, ninguém que tenha em sua casa um porta-escovas-antigas-porque-a-gente-não-se-sente-bem-em-jogar-fora. Não quero a alcunha de ter sido o primeiro a inventar tal invenção.

Quanto à escova nova, era toda faceira. Marca famosa, cerdas novas e macias, a última recomendação dos dentistas. Apossou-se do portaescovas, virou vedete e pôs-se de costas para a escova antiga, ignorou-a como se não existisse. Achei errado! Uma escova nova e educada deve, no mínimo, respeitar os mais velhos pelo dever cumprido e pela experiência de vida. Este tom de desdém era muito deselegante! Deixei-as ali, anoiteceu, dormi.

Dia seguinte, quando acordei, ouvi silêncio. Imaginei ter havido diálogo durante a noite:  a escova velha dando conselhos à noviça, dicas de como cumprir bem a sua missão: este ou aquele dente que carece de mais cuidados; defeitos de escovação, etc. A noviça, manifestando-se oralmente, esta é a razão de ser das escovas, falou apenas sobre banalidades: esmaltes, novelas, facebook e Michel Teló. Enquanto isso, sacudia suas cerdas novas e elogiava certa marca de shampoo. Um perfeito protótipo do vazio-império da pós-modernidade.
  Imaginar assim a escova nova, fez-me sentir preconceituoso. Conheço escovas novas que têm muito o que falar, que filosofam, politicam, contribuem, não jogam palavras à toa. Também há escovas velhas que curtem as banalidades das novelas, esmaltes e Telós. Nada disso, no entanto, as faz melhores e nem piores, apenas são o que são ou agem como lhes coube a vida.

Outras escovas velhas são como os Sapatos Velhos do Roupa Nova: eivados de lembranças ou expectativas, ainda servem; se calçados, ainda podem aquecer o frio de muitos pés. Além disso, Sapato Velho ou Escova Usada também caminham para o futuro. E eis o futuro!

E preciso saber, de antemão, que não adianta cansar de beber a água da fonte; não há revés nem retrocesso no tempo. Importa é manter vivo o desejo de ainda querer roubar da manhã muitos pores-de-sol. Importa é andar léguas buscando azuis flores-de-maio para enfeitar cabelos, ainda que não mais seja possível voar com a velocidade dos herois.
  A escova velha? Tá guardada. Deixei numa gaveta. Usei-a, dia desses, para tirar uma poeira que se escondia num cantinho bem escondido, num jarro onde havia flores-de-julho.  Outro dia, usei-a para escovar um sapato velho que, sob os cuidados dela, se fez novo. Jogá-la fora? não! Ela ainda tem muito a realizar.

Na fase "escova velha e sapato usado" as realizações têm um certo gosto "agri" mas também "doce". Usemos a vida toda, enfim, porque "o melhor é usar a totalidade da vida. Não deixar nada para a morte senão restos, nada além de um castelo queimado" - Irvin Yalom.
 





segunda-feira, 10 de junho de 2013

Eu, a vírgula, o ponto e...

Encontrei na Internet um artigo que dizia assim dois pontos Aprenda definitivamente a usar vírgula com quatro regras simples ponto 1 - Usa-se a vírgula para separar elementos que você poderia listar ponto Veja esta frase dois pontos reticências Como assim ponto de interrogação Não consigo entender ponto de exclamação O texto quer ensinar o uso da vírgula vírgula mas não usa a vírgula ponto e vírgula usa o ponto vírgula os dois pontos reticências E eu vírgula tentando entender vírgula questiono vírgula uso o ponto de interrogação vírgula uso a exclamação vírgula e não entendo quase nada ponto


Acho que nunca tive muita dificuldade para usar os sinais de pontuação. Mas tem umas coisas que sempre me deixaram meio tonto. Diz-se que a vírgula é uma pausa curta, uma respiração rápida. E que o ponto é uma pausa longa, uma respiração profunda. Mas, quando aparece um ponto vírgula, como é que eu vou fazer uma pausa curta e longa, ao mesmo tempo? como é que vou fazer uma respiração curta e profunda, ao mesmo tempo? Não sei!


Também se diz: se há pausa, há vírgula. Isto sempre me confundiu porque cada pessoa tem a sua pausa própria, e esta pausa varia de acordo com o jeito ou ritmo de falar de cada um. Sendo assim, não pode haver regra. Eu uso a vírgula nas minhas pausas, você usa a vírgula nas suas pausas e ponto. E se é ponto, não é vírgula. Aliás, uma coisa que me agrada muito na vírgula é o fato de ela não ser ponto final. Não sendo ponto final, depois dela vem algo mais, algo a mais, um dito, uma fala, um escrito, um devir.


Também sempre questionei a quantidade de sinais de pontuação na nossa língua. Alguns deles carecem de importância e outros têm valor igual ao dos créditos de um filme ou a jarros sem flor. Parêntesis e travessão, por exemplo, ninguém quer saber, porque se saírem do texto não vão fazer falta, não afetam a estrutura.  


Outros, no entanto, são gostosos de usar, e acho que fazem o escrito ficar bonito. Uso-os à beça, quero nem saber o que dizem os estilistas do texto.


Gosto do Ponto de Interrogação porque ele instiga uma resposta ou reflexão, quer saber o que eu diria ou, que você diria? Gosto do ponto de exclamação porque ele carrega consigo emoção, espanto, arrebatamento, entusiasmo, suspresa! Dos dois pontos porque indicam um prenúncio, anunciam algo que há de vir: uma citação, enumeração, esclarecimento. Das reticências, porque indicam continuidade, deixam o espaço aberto para que o leitor complete, viaje, elucubre também. Sobre estas, fico com Mário Quintana: "as reticências são os três passos do pensamento que continuam por conta própria o seu caminho..."


Não gosto do ponto final porque ele limita,  fecha o cerco, conclui, impede avançar. Parece a morte, necessária e inevitável. Na verdade, seria bom nunca precisar usá-lo e deixar o final com reticências, que permitem mais, não deixam morrer o texto nem a ideia. Para encará-lo, parafraseio Woody Allen: "não tenho medo da morte. Apenas não quero estar lá quando isso acontecer". Se eu pudesse, também não estaria lá quando o ponto final aparecesse.


Ocorre que um dia desses recebi uma mensagem via celular e o texto acabava assim :D 


Respondi a mensagem confessando não ter entendido o :D, já que o remetente não se chamava Daniel, nem Dilma e nem Deus. Recebi, em resposta, que :D significa "dois olhinhos e uma boca, que compõem uma carinha sorrindo". 


Viajei, fiquei curioso, recorri à internet e procurei no Google, o oráculo do século. Descobri que a "tribo" usa uma linguagem cheia das letrinhas e sinais que formam carinhas bonitinhas e que os mais velhinhos como eu precisam aprender a interpretar. Em suma, a "tribo jovem" encontrou uma nova utilidade para os sinais de pontuação. Brincar de de carinhas é muito mais interessante do que aprender regrinhas, eis a dica decifre-as!


Mas, por que escrever tudo isso? Porque segundo alguém de quem não lembro o nome, "não existe literatura; existe autobiografia". Falando de sinais de pontuação, também falo de mim. Preferir reticências e interrogações a pontos finais e travessões é dizer um pouco do que sou. Acabo sorrindo, acompanhando Nietzshe: “...falsa seja para nós toda verdade que não tenha sido acompanhada por uma gargalhada


Claro que não vou terminar com ponto final. Afinal de contas, continuo elucubrando...









sexta-feira, 19 de abril de 2013

Eu, Toinho, a Bicicleta e a Sanfona


Toinho tinha uma bicicleta. Não sei de quem ganhou: da mãe, do pai ou da madrinha. Só sei que ele tinha. Tinha e vivia por ali, subindo e descendo, indo e vindo, correndo e pedalando. Era dele. Eu gostava de ver e pensava em andar naquela bicicleta. Não sei se às vezes emprestava para alguém, deixava dar uma voltinha. Nunca pedi, nem vi, por isso não sei.

Um dia Toinho alardeou que ia vender a bicicleta. Botei olho grande e desejei. Imaginei-me dono e legítimo possuidor da magrela. Imaginei-me indo e vindo, subindo e descendo, correndo e pedalando. Falei pro meu pai comprar aquela bicicleta. Ele disse, não! não vou comprar. Dei um tempo, não insisti, talvez ele mudasse de ideia. Que nada.

Naquela época o mercado já vivia dias de concorrência acirrada. Por isso, quando voltei ao assunto, meu pai retrucou: nada de bicicleta! Vou comprar uma sanfona. Putz! Um conhecido do meu pai, que tinha uma sanfona de 80baixos (daquela bem grandona, tipo profissa) também botou placa dizendo: Vende-se uma sanfona. Foi o fim!

Sanfona? Como assim? Não houve tempo para a resposta. No dia seguinte, eis-me sentado numa cadeira tentando segurar aquele bicho pesado. Um lado da sanfona sobre a perna esquerda e o outro pendurado, quase batendo no chão. Era pra eu tocar?!. Tentei!!. Puxava para cima o lado dos baixos e, de tão pesado, deixava cair. Segurava com força o lado direito, o lado do teclado. Em pouco tempo fui apertando as teclas, foi saindo som e loguinho loguinho saiu parabéns pra você.

Tem futuro. Vai tocar. Vou tocar. Tenho futuro. Soletrei outros pedaços de música  e, de repente, já estava eu tocando uma música da igreja. Só do lado direito da sanfona, do lado melodia. Do outro lado eu não conseguia nada, apesar de ser canhoto, por causa do peso. 

A música dizia assim:

Andei tão longe do Senhor, assim eu quis andar. 
Até que encontrei o amor em seu bondoso olhar.
Seu maravilhoso olhar, seu maravilhoso olhar.
Transformou meu ser e todo o meu viver. Seu maravilhoso olhar...

Facilzinha de tocar. Melodia simples. Em casa todo mundo dizia: toca aquela. E aquela de novo. Que tal tocar outra... aquela. Aquela ficou batizada de "vivi tão longe". Toca vivi tão longe.. toca vivi tão longe... não havia outro pedido. De fato, eu vivia tão longe da bicicleta, era de dar dó. Meu pai sonhava com um Sivuca e eu sonhando com o Lance, vivendo tão longe... da minha bicicletinha. Ai meu Deus!.

Pronto. Estava acertado. No fim de semana iríamos pra casa do meu avô. Perto dali iria acontecer um culto. Eu iria tocar e a minha irmã iria cantar. Decidido. Meu pai, minha mãe e as outras irmãs estariam lá para assistir a Edson e Edna - a dupla! Foi assim. Chegamos a fazer duas apresentações. E foi só. Era bonitinho, os filhos da irmã Cleonice e de Seu Heleno tocando. Que fofo! Era bonitinho e desafinadinho e ruinzinho e todos os outros inhos. Mas era fofo, o que valia.

Que fofo que nada! Eu morria de vergonha e de cansaço. Aquilo era pesado demais. Eu não conseguia nem ficar de pé. Seria muito melhor ter uma bicicleta. Meu Senhor com seu maravilhoso olhar, me ajude a ter uma bicicleta. Cadê a minha bicicleta. Eu não tinha bicicleta, eu tinha uma sanfona. Será que era porque eu tinha andado longe do Senhor? Por que em vez de transformar o meu ser, o Senhor não transformou o ser do meu pai para ele me dar uma bicicleta? Não adiantava perguntar.

Esperei. Desisti da sanfona e nem lembro do que foi feito dela. Algum tempo depois ganhei uma bicicleta. Meu pai alegou, e eu concordei com ele, que não tinha comprado aquela outra porque era pequena demais pra mim. Logo, logo, ela estaria perdida porque eu iria crescer. Sério? Eu iria crescer? Jura? Que nada! Eu era pequenininho e franzino. Minhas duas irmãs eram mais novas e mais altas. Certamente mais bonitas, mais inteligentes, mais tudo. Eu era aquela coisinha minguada. Uma vez meu pai chegou a comentar: a quem puxou esse menino? Anão desse jeito!

Meu Deus! Será que sou anão? Não. Não sou anão. Anão é pequeno e tem a bunda empinada. Eu não tinha bunda, era magro feito um palito, a galera até tirava onda me chamando de tabica. Era pequeno, beleza. Mas não tinha bunda empinada, não poderia ser anão. Que alívio! Quero crescer. Pai, o que faço pra eu crescer? Quer crescer? Vou dar um jeito. Torou um pedaço de pau, acho que um cabo de enxada ou de picareta, pregou numa porta, de um lado a outro e disse: Se quiser crescer, fique pendurado aí. 

Eu não queria mais bicicleta. Eu queria era ficar pendurado e crescer. Doía os braços. Eu quero crescer, tenho que ficar pendurado. Ficando pendurado eu cresço. Não pensava em outra coisa senão ficar pendurado e crescer. Ganhei a bicicleta. Uma bicicleta grande. Talvez para me estimular a crescer. Eu quase não conseguia subir na magrela, mas eu tinha uma bicicleta. Pronto. 

Agora eu andava perto do Senhor. O Senhor tinha transformado meu pai, tinha transformado a mim e transformado o mundo. Eu estava contentão! Eu tinha uma bicicleta. Encontrei o amor em seu bondoso olhar, enfim. Um dia, andando por ali, nem tão longe de casa, fui atropelado por um caminhão. Meu Deus! Lá estava eu, outra vez, longe do Senhor. Quem anda perto do Senhor não é atropelado por um caminhão. Será que foi castigo? Valha-me Deus! Se eu estivesse sentadinho... tocando sanfona... não teria sido atropelado. Caraca!

Cheguei em casa com a bicicleta toda estrupiada. A roda quase quadrada, minhas canelas sangrando. A bicicleta ficou parada por uns quatro meses. Eu tinha medo de andar de novo e acontecer outra tragédia. Eu precisava ficar perto do Senhor, nada de andar de bicicleta. Cresci. Mas foi muito tempo depois, só quando comecei a jogar futebol. Meu pai esqueceu o Sivuca, eu esqueci o lance de ser o Lance e agora eu queria ser o Rivelino ou o Djalma Santos. Jogaria no Palmeiras. Meu pai falou. Tá falado! Assim será!

O tempo passou. A vida é assim, passa como um pisca-pisca, segundo a Emília.* Piscou e foi sanfona! Piscou e foi bicicleta! Piscou e foi futebol! Piscou e hoje é carro e bicicleta e vôlei, sem a menor pretensão de ser um Giba. Parou de piscar e se foi o  autor e mentor destas proezas, vítima de um assalto, há 24anos.

Tudo vai piscando e eu me ponho a lembrar e a escrever. Lembrar dele e destas coisas que vivemos juntos me bate um banzo danado. Mas ninguém morre de banzo. Digo de mim o que já disse um poeta "...se não morreu de banzo na vida, talvez morra de amor na morte..." Eis a esperança! Virou hipótese!


*A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem para de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso. É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais. A vida das gentes neste mundo, Senhor Sabugo, é isso. Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia. Pisca e mama. Pisca e anda. Pisca e brinca. Pisca e estuda. Pisca e ama. Pisca e cria filhos. Pisca e geme os reumatismos. Por fim, pisca pela ultima vez e morre.
- E depois que morre? perguntou o Visconde.
- Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?
- É.
                                                Memórias de Emília - Monteiro Lobato


Eu e Edna - Eu e Edna
Seu Heleno - Dona Cleonice e Eu

Sivuca - Eu - Giba
Roberto Rivelino - Lance Armstrong - Djalma Santos












terça-feira, 16 de abril de 2013

O Velho e o Novo se confrontam...


Segundo Aurélio:
Significado de Velho: adj. Que tem idade avançada; idoso; que existe há muito tempo; antigo; desusado; que se opõe-se ao novo. Significado de Novo: adj. Que existe há pouco tempo; acabado de fazer; moço, de pouca idade; visto pela primeira vez; recente; o velho e o novo se confrontam.

Eis o velho sentado num banco de praça a ver passar o tempo e o mundo. Olhar fixo no horizonte, alheio ao que lhe passa perto, posto a sonhar com o distante que se foi. Vida quase ida, lembranças vagas, futuro quase passado. Do que lhe resta, resta pouco. Era uma vez... ele sente. E se pergunta se esta sua vida zerada foi vida vivida de verdade ou se os passos de sua estrada resultaram em nada.

Recita Clarice, dizendo "sinto saudades da minha infância (A Infância é uma faca enfiada na garganta, da qual ninguém se livra facilmente - Incêndio), do meu primeiro amor, do meu segundo, do terceiro, do penúltimo e... e se põe a lembrar das peripécias amoroso-sentimentais-apaixonais de outrora. Vagamente lembra e só com muita dificuldade consegue concluir o verso daqueles amores que ainda vou ter" pois não mais acredita que tê-los seja possível.

Sorrindo perto dali vem o novo, andando engraçado, cheio de vida, anunciando promessas e prenunciando porvir. Olha tudo lá do alto, tal qual árvore frondosa, e de lá se regozija com as perspectivas e possibilidades de vidas por viver. Traz consigo as esperanças suas e do mundo, julgando-se o cumpridor das promessas.

Nada entende de mãos enrugadas, de semblante triste, de erros não cometidos. Também não entende o linguajar epitáfio, o lamento por não ter amado mais, ter errado mais (erros são episódios necessários), ter visto o sol nascer ou se pôr porque para ele são problemas pequenos. Amar mais ou amar menos? que diferença! Não compartilha dessas incertezas e inseguranças. Nem tampouco viaja carregando certezas ou seguranças. Apenas anda descalço pelas ruelas e avenidas da vida, viajando livre e solto, de velas içadas, jogadas ao mar, sem tantas perguntações.

Naquela tarde e esquina de praça, o velho encontrou o novo e o novo tentou entender o velho com a sua linguagem estranha e o seu discurso-do-que-já-foi, saudosismo, déjà vu. Naquela tarde e praça da vida o novo encontrou o velho e o velho tentou entender o novo com a sua linguagem e o seu discurso-do-que-virá, desprovido de saudosismo e déjà vu.

Mas queriam se entender e nesse afã, se desejaram.  E se desejaram e se apaixonaram. E apaixonados experienciaram um pouco de vida apostando que algo maior poderia resultar da alegria pueril de um e da melancolia senil do outro. Quiseram-se amar e até tentaram, acreditando em Rubem Alves: "o amor nasce na escuta". Mas não se amaram, "porque na não-escuta é que o amor termina".

É que na fala-escuta perceberam que o novo teria que acelerar o curso para alcançar o velho; e isto implicaria em atropelar algumas fases e redundar em algumas perdas. E que o velho teria que retardar o curso e esperar pelo novo; mas já não havia tempo.  Olhavam-se, queriam-se, desejavam-se... mas o tempo é soberano e a sua vontade se sobrepõe a qualquer vontade em contrário. Na verdade, o tempo e o curso da vida são como algumas catracas, só giram para a frente, só avançam.

Prementes dicotomias: um planeja a carreira, o outro conta os dias de aposentado; um não definiu o que quer da vida, o outro não tem muito mais o que querer; um ainda deve explicação ao mundo, o outro nada tem a explicar; um se apronta para festa e farra, o outro se apronta para deitar e dormir o sono dos que não vão ou dos que já foram".

Tantas coisas diametralmente opostas inviabilizaram a relação e a realização da viagem imaginada, do vinho, da música, da dança, da festa... e o paraíso não se materializou, enfim. Alguns atos e palavras mal interpretados, mal entendidos, não entendidos. Houve machucados e tristezas. De tanto, não lhes restou caminho, senão caminhar em direções opostas.

Não souberam tirar da sabedoria pueril de um e da sabedoria senil do outro, a sabedoria necessária para... 

E o velho sonhador sentou no Banco expectando que um dia por ali passasse algo mais afim, antigo, arcaico, demodé, ancestral, ancião, antepassado, vencido... Claro que isso é esquisito, mas "se você me achar esquisito, respeite também. Até eu fui obrigado a me respeitar"  - Clarice Lispector.








terça-feira, 9 de abril de 2013

Eu, Mme Deprê e o Por que..?


Não, não me pergunte "por que você está assim?". Esta é a pior pergunta que um deprimido pode ouvir. Eu não sei explicar. Só sei que é uma tristeza profunda e um vazio que me bate à porta e me remete a um lugar de dor onde eu não queria estar. Não há hora e tempo determinados para surgir e chegar, como também não há hora e tempo determinados para me deixar e ir embora. Não é constante; é tempos sim e tempos não, horas sim e horas não. Também varia de intensidade; às vezes doi mais, às vezes doi menos. Não tenho controle. 


Num momento ou dia qualquer, de repente, surge uma sombra e esta sombra transforma tudo em tristeza, provoca dor, sensação de inadequação, desejo de fugir de mim e de tudo, ir pra não sei onde. Dormir é difícil, acordar é amedrontador, trabalhar é tedioso, tudo se transforma num insuportável-igual-sem graça-tudo fuga, fuga do nada que leva a lugar nenhum. Machuca o peito, endurece a alma, desafia a euforia, empurra pra baixo, derruba, põe no chão, degringola, decreta a tristeza, o desespero e o desencanto.



Tenho a sensação de que num momento qualquer que eu não sei, algo ou alguém me tirou um pedaço. E a falta deste pedaço provoca o incômodo-ruim que me faz desejar o ir pra não sei onde e fazer exatamente não sei o quê porque eu não queria estar ali e também não queria estar lá e nem em lugar nenhum e não ser nada e inexistir. Ser eu mesmo, algo do que me orgulho algumas vezes, de repente se transforma num erro absurdo, digno de uma borracha que me apague pra sempre, para nunca mais lembrar, pra nunca mais ter sido. Nestes dias eu choro e choro e choro e fico de olhos nublados impedido pelas lágrimas de ver o sol e mar que tanto amo. 



Ainda assim, chorar tem sido o meu socorro. Sem a capacidade de chorar, seria impossível viver o vazio que ocupa todos os espaços. Chorar tem servido de socorro porque num choro quaquer, num dia qualquer, também indefinido e sem momento determinado pra chegar, o choro vai levando o vazio para um lugar que é não sei onde e sem explicação. Também sem explicação, lágrimas outrora turvas de repente parecem ir lavando e limpando a alma, fazendo retornar um hálito tênue de vida, devolvendo um pouco da respiração perdida. E como se se cumprisse a palavra-profecia do sábio: "o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem ao amanhecer", vou amanhecendo.



Amanhece e depois do choro vem aquele cansaço providência divina. Deito-me, fecho os olhos, cabeça sobre o travesseiro, respiro fundo e profundo e fico ali revirando memórias, procurando imagens. O sono perdido aos poucos retorna, a hora passa, o corpo descansa, os olhos enxugam e mais tarde acordo melhor quando abro os olhos e já com um quase outro olhar, pela janela já quase consigo ver o mar e o sol que tanto amo.



Embora ao redor tudo esteja o mesmo, tudo já não é mais o mesmo, eu já não mais o sou. Por dentro parece ter sido acesa uma chama, ainda fraquinha, que vai resistindo ao vento, titubeando, brilhando, me tirando aos poucos do escuro e me fazendo renascer um tantinho de vida. Levanto-me, saio do ninho, procuro algo pra fazer ganho as calçadas, a rua, o mar e mundo sob o sol e sobre o meu alívio.



Apresento-lhes, para terminar, madame deprê: atriz impetuosa e cheia dos direitos que decide hora e dia de atuação e e hora e dia de bastidores. Quando está no palco, me joga na cara uma pá de tristeza e me se enterra encostado ao muro. Quando decide recolher-se a minha alegria toma conta e tudo vale a pena. Impetuosa, esta tinha medonha não me deixa e não se vai, não me deixa e nem se morre, apropria-se e se estabelece ao seu bel prazer e se deleita na dor quando bem o quer. Livrar-me dela, apesar de muita luta, não sei.  



Livra-me dela não sei porque se  esta tinha tivesse corpo e cara ou se eu soubesse o porquê ou onde é se esconde, eu já lhe teria enfiado a faca e a estaca e extirpado do peito, do corpo e da alma. Ocorre que não sei, repito. Se é biológico, patológico, lógico ou ilógico, também não sei. Recorrer aos arquétipos, infância, adolescência, juventude, meia idade, seja lá o que for, não oferece resposta e eu também não sei. De alguma forma e em alguma proporção, todos encaram a tal madame, mas isso também não me oferece resposta satisfatória e outra vez, eu não sei.



Portanto, não me pergunte: "por que você está assim?" 



Não há resposta, nenhuma resposta cabe nesta pergunta, enfim. 



Sente-se. Sofre-se. Agoniza-se. Chora-se. Lamenta-se. Entristece-se. Alegra-se. E fim. 



Assim. Tem sido assim!





















quarta-feira, 3 de abril de 2013

Reencontro com a minha Veneza


Estou voltando, minha Veneza. Voltando para aconchegar-me em teus braços porque eu não aguento mais nem um minuto longe de você, sofrendo de tantas saudades. Quero olhar nos teus olhos, te abraçar, sentir teu cheiro e me morrer e reviver extasiado possuído pela dimensão do que sinto por ti. Quando nos abraçarmos, ainda pequenos, ruazinha-beco-viela, vamos nos transformar na metrópole dos sonhos, aquela que não cabe no mundo, porque infinitamente repleta de desejos e vontades.

Quando eu chegar, minha Veneza, trazendo ainda o frio lá de cima, quero-te beijar e receber de tua boca o hálito quente dos trópicos, que há tanto tu guardas desejando me entregar e eu ansioso desejo receber. Sim, eu me entregarei a ti como alguém que se joga das alturas esperando encontrar no solo algo que o ampare e o salve da queda e da morte. Sim, tu te entregarás a mim como se eu fosse o dono das asas ou tivesse o poder de te fazer voar e erigir-te às alturas e através do nosso encontro lá no alto nos livrássemos, eu da queda e da morte e tu da solidão e da espera.

Quero andar por tuas ruas curvas, retas, enviesadas e infinitas, minha Veneza, nas quais circulo sem precisar de mapa ou guia porque as minhas mãos já te conhecem inteira; quero mergulhar no teu mar e nos centígrados ou célsius de tua temperatura que me refrescam e aquecem o corpo e alma; quero sentir na pele o quente do teu calor, entregando-se ao prazer da minha chegada; quero apreciar-te a sombra do  corpo que a luz do sol desenha nos edifícios à beira mar; quero reconhecer a tua voz no barulho das ruas e admitir não ser possível nunca, nunca mais, ficar longe dessa música-sinfonia que só você sabe compor.

Mais tarde, minha Veneza, dormir na varanda deitado na rede, tal qual hiberna um urso outrora faminto e agora saciado: saciado da fome e do afã de te rever, de te encontrar, de te tocar, de te ter; do prazer imenso que é poder estar contigo e morar em ti como se fosse a primeira e última morada, eterna mas nunca a última vez. 

Em oração, minha Veneza, vou às igrejas agradecer aos deuses e ao único Deus porque você existe; porque em ti eu não encontro apenas o meu endereço, mas a minha residência fixa;  porque nos teus caminhos eu nunca me perco; porque em ti eu não sinto frio e em lugar de casacos ou muitas roupas tu me ofereces o agasalho dos teus braços; porque contigo as imagens são nítidas e coloridas e nunca foscas ou esbranquiçadas; porque tu me serves o prato o predileto e não somente aquilo que eu entendo do menu.

Amanha, quando anoitecer e eu puder rever tuas janelas com vista pro mar e a tua varanda com jarro, flor e rede pra deitar, deitarei tranquilo e dormirei minha Veneza. Anelo por esta tranquilidade porque sou agora outro, depois de ter visto alguns mundos e ter revisto alguns outros. Trago deles a certeza de Heráclito: eu não sou mais o mesmo. Estava certo o filósofo, quando dizia que um homem não toma banho no mesmo rio por duas vezes. Na vez seguinte, o homem será outro, a água será outra, o mundo será outro. Sim, sou outro, depois de tudo o que vi e vivi. Sou outro na certeza de que é impossível habitar em outro lugar porque o meu endereço só quer o teu endereço, o meu corpo só quer o teu corpo, o meu coração só se alinha ao teu coração, a minha mente só pensa em ti e a minha alma só dorme em paz quando dorme sob o teu luar e só acorda em paz quando vê brilhar o teu sol, minha Veneza.
















domingo, 24 de março de 2013

Eu, Pedro, Ana e Salomão


Em parte concordo com o Mílton, quando canta Canção da América, falando de amigo. Legal guardar dentro do coração e no lado esquerdo do peito, Quanto a isso, estamos juntos. Mas eu não gosto da ideia de "guardar debaixo de sete chaves". Ainda que "sete" seja, biblicamente, o número da perfeição, prefiro abrir mão dessa perfeição-segurança das chaves e dizer que na minha opinião amigo é coisa para alardear, falar, dizer e gritar aos quatro ventos. Por isso, entendam este texto como grito e alarde!!!

Pois bem. Um dia, através de Andrea Monte, fui apresentado a Ana Paula. Através de Ana Paula, fui apresentado a Pedro Henrique. A gente se encontrou, conversou e selou uma amizade tão grande, que pode ser definida através das palavras do sábio Salomão. Em O Livro de Provérbios ele diz, que "...há amigos mais chegados do que um irmão" e  "...em todo tempo ama o amigo e na angústia nasce um irmão". Dito isto e fim, Já seria o bastante!. Mas Salomão avança um pouco mais e diz também que "a boca fala daquilo que o coração está cheio". É por isso, de coração e boca cheios, que vou falar mais sobre eles. 

Pedro Henrique e Ana Paula são meus amigos-queridos-companheiros-de-vagem. Fazemos um trio de dar medo. Dar medo porque qualquer porta aberta que se colocar à nossa frente, a gente ultrapassa e vai embora, pra qualquer canto do mundo. E quando resolvemos ir, só tem dia pra sair e não tem dia nem hora pra voltar. Não há mala pesada que nos impeça, não há aeroporto que não nos ofereça voo, não há barreira linguística que nos impossibilite, não há imigração e segurança de cara feia que nos faça dar um passo atrás. A gente vai, e pronto!

Já demos algumas voltas por este mundão que começa no Recife.  Já fizemos roteiro junto e roteiro separado. Quando o programa é de interesse comum (fotografia, música, teatro, museu...) estamos juntos. Quando o programa é de interesse individual (futebol e cemitério, risos...) estamos separados. Não há noia, não há dependência nem cobrança. A gente se ama assim, desse jeito. Por isso, a gente já rodou por aí e já viu muita coisa: o Papa e a Rainha, o Sena e o Elba, o Louvre e o o Prado, o Vaticano e a Torre, o Champs e o Père, a Sagrada Família e o Moulin, o Coliseo e a Plaza Mayor, só pra economizar na relação.

Da última vez, tivemos o (des)prazer de conhecer o "pior mosqueiro" do mundo. Mundiçar é turistar, risos. Foi assim: Chegamos em NY. Pedro e Ana fizeram check-in no seu hotel (às vezes ficamos em hoteis diferentes), aterrissaram as malas e resolveram ir comigo ao hotel que eu havia reservado. A ideia era deixarmos no hotel a minha mala e de lá sairmos para dominar as 5ª, a 6ª e 7ª avenidas, incluindo Broadway, adjacências e tudo o mais que houvesse num raio de 7mil quilômetros. Quem é que vai para NY para ficar em quarto de hotel, dormir e descansar? Alguém. Não nós! 

Chegando lá, não havia hotel. Havia um holliday (aquele meu vizinho, lá pros lados de boa viagem) exponencialmente piorado. O ambiente da entrada, que seria hall ou recepção, era a antessala do inferno. Recebi uma chave com a recomendação de dar uma olhada no quarto e, "se fosse do meu agrado, eu faria o check-in". Subimos, meioquaseamedrontados com a aparência do ambiente e fomos ver o quarto 307. Quarto? Como assim? Havia uma cama estreita e quinze centímetros para se locomover, não mais. Não havia guarda-roupa ou qualquer outro móvel e o banheiro estava em estado de putrefação e nojo extremos. Óbvio, Impossível ficar.

Saímos dali de olhos arregalados! Ana me olhava e dizia: Ei... ei... olha pra mim... relaxa... a gente vai achar um lugar, dá-se um jeito, desencana, fica bem! Eu continuava de olho arregalado. Onde é que eu iria aterrissar a minha burrinha? Pedro falou, decidido: vamos comer alguma coisa, depois voltamos pro hotel onde eu e Ana estamos, a gente entra na internet e arranja outro lugar. Claro que me preocupei. Era quase o dia seguinte, a noite estava fria e eu ainda não tinha um lugar para ficar, descansar, dormir.

Assim foi. Comemos pizza. Voltamos ao hotel de Pedro e Ana. Plugamos a net. Fizemos uma nova reserva. Eles foram comigo e só me deixaram depois que eu já estava instalado, check-in feito, e agora com um lugar onde poderia ficar e dormir, enfim. Saíram, e só agora vão saber, eu chorei. Não apenas um choro de alívio, porque de alguma forma tudo se resolve,  mas chorei um choro agradecido porque eles existem, porque eu os tenho amigos e os considero irmãos.

E para colorir a mensagem, aí vão algumas fotos do trioshowdebolapipocodedjá!!!