domingo, 7 de julho de 2013

Eu, a Escova Usada, o Sapato Velho e a Roupa Nova

Um dia desses comprei uma nova escova de dentes, atentando para uma recomendação dos entendidos em dentição e escovação. A outra já estava velhinha e desgastada. Na hora da substituição, no portaescovas, eis-me num dilema: por um motivo que ainda não sei, não tive coragem de fazer a substituição e jogar a escova velha fora.

Dei-me conta de que não é justo, depois do tanto que ela me serviu, decretar-lhe o fim e a morte, como se fosse o dono do mundo ou um deus que descarta, quando não mais lhe serve. Olhei-a e a imaginei pensando e questionando o fato de ser tratada assim, como se nada significasse. Não era revolta e nem resignação, não faz parte do mundo das escovas. Era apenas um olho no olho, ou dente no dente, um convite para uma reflexão final.
  Para ser fabricada, a escova passou por processos dolorosos como fogo e prensa. Foi manuseada, encaixada, transportada e exposta numa prateleira para um dia cair em minhas mãos e em minha boca. Serviu-me tão bem.

Mas guardar escovas velhas deve ser um hábito, no mínimo, estranho. Não conheço ninguém que o faça, ninguém que tenha em sua casa um porta-escovas-antigas-porque-a-gente-não-se-sente-bem-em-jogar-fora. Não quero a alcunha de ter sido o primeiro a inventar tal invenção.

Quanto à escova nova, era toda faceira. Marca famosa, cerdas novas e macias, a última recomendação dos dentistas. Apossou-se do portaescovas, virou vedete e pôs-se de costas para a escova antiga, ignorou-a como se não existisse. Achei errado! Uma escova nova e educada deve, no mínimo, respeitar os mais velhos pelo dever cumprido e pela experiência de vida. Este tom de desdém era muito deselegante! Deixei-as ali, anoiteceu, dormi.

Dia seguinte, quando acordei, ouvi silêncio. Imaginei ter havido diálogo durante a noite:  a escova velha dando conselhos à noviça, dicas de como cumprir bem a sua missão: este ou aquele dente que carece de mais cuidados; defeitos de escovação, etc. A noviça, manifestando-se oralmente, esta é a razão de ser das escovas, falou apenas sobre banalidades: esmaltes, novelas, facebook e Michel Teló. Enquanto isso, sacudia suas cerdas novas e elogiava certa marca de shampoo. Um perfeito protótipo do vazio-império da pós-modernidade.
  Imaginar assim a escova nova, fez-me sentir preconceituoso. Conheço escovas novas que têm muito o que falar, que filosofam, politicam, contribuem, não jogam palavras à toa. Também há escovas velhas que curtem as banalidades das novelas, esmaltes e Telós. Nada disso, no entanto, as faz melhores e nem piores, apenas são o que são ou agem como lhes coube a vida.

Outras escovas velhas são como os Sapatos Velhos do Roupa Nova: eivados de lembranças ou expectativas, ainda servem; se calçados, ainda podem aquecer o frio de muitos pés. Além disso, Sapato Velho ou Escova Usada também caminham para o futuro. E eis o futuro!

E preciso saber, de antemão, que não adianta cansar de beber a água da fonte; não há revés nem retrocesso no tempo. Importa é manter vivo o desejo de ainda querer roubar da manhã muitos pores-de-sol. Importa é andar léguas buscando azuis flores-de-maio para enfeitar cabelos, ainda que não mais seja possível voar com a velocidade dos herois.
  A escova velha? Tá guardada. Deixei numa gaveta. Usei-a, dia desses, para tirar uma poeira que se escondia num cantinho bem escondido, num jarro onde havia flores-de-julho.  Outro dia, usei-a para escovar um sapato velho que, sob os cuidados dela, se fez novo. Jogá-la fora? não! Ela ainda tem muito a realizar.

Na fase "escova velha e sapato usado" as realizações têm um certo gosto "agri" mas também "doce". Usemos a vida toda, enfim, porque "o melhor é usar a totalidade da vida. Não deixar nada para a morte senão restos, nada além de um castelo queimado" - Irvin Yalom.