quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Herman, Harry, o Lobo e Eu

Era uma vez um certo Harry. Andava sobre duas pernas, usava roupas e era homem, mas não obstante era também um Lobo. Havia aprendido uma boa parte de tudo quanto as pessoas de bom entendimento podem aprender e era bastante ponderado. O que não havia aprendido, entretanto, era o seguinte: estar contente consigo e com sua própria vida. Era incapaz disso, daí ser um homem descontente. Isso provinha, decerto, do fato de saber que, no fundo de seu coração, sabia sempre (ou julgava saber) que não era realmente um homem e sim um Lobo. Tinha, portanto, duas naturezas, uma de homem e outra de lobo; tal era o seu destino, e nem por isso tão singular e raro.
 
A esse propósito há que se acrescentar: muitas pessoas há que se assemelham a Harry. Essas pessoas têm duas almas, dois seres em seu interior; há neles uma parte divina e uma satânica, há sangue materno e paterno, há capacidade para a ventura e para a desgraça, tão contrapostas e hostis como eram o lobo e o homem dento de Harry. E esses homens, para os quais a vida não oferece repouso, experimentam às vezes, em seus momentos de felicidade, tanta força e tão indizível beleza, a espuma do instante de ventura emerge às vezes tão alta e deslumbradora sobre o mar da dor, que sua luz, espargindo radiância, vai atingir a outros com o seu encantamento. A isto se devem, a essa preciosa e momentânea espuma do mar do sofrimento, todas aquelas obras artísticas em que o homem solitário e sofredor se eleva por uma hora tão alto sobre o seu próprio destino, que sua felicidade brilha como uma estrela, e parecem a todos os que a vêem como algo eterno e como se fosse seu próprio sonho de ventura. Todas essas pessoas, sejam quais forem seus atos e obras, não têm propriamente uma vida, ou seja, sua vida carece de essência e de forma, não são heróis, nem artistas, nem pensadores da maneira como os demais homens são juízes, doutores, sapateiros ou mestres; sua existência é um momento de fluxo e refluxo, está infeliz e dolorosamente partida e é sinistra e insensata, se não estivermos propensos a ver um sentido precisamente naqueles raros acontecimentos, ações, pensamentos e obras que brilham às vezes sobre o caos de semelhante vida. Entre os homens dessa espécie surgiu o perigoso e terrível pensamento de que, talvez, toda a vida do homem não passa de um espantoso erro, de um abandono brutal da mãe primeva, um cruel e selvagem intento frustrado da Natureza. Mas entre eles surgiu também a ideia de que o homem talvez não seja apenas um animal dotado de razão, mas o filho de Deus destinado à imortalidade.
 
O Lobo da Estepe
Herman Hesse