sexta-feira, 19 de abril de 2013

Eu, Toinho, a Bicicleta e a Sanfona


Toinho tinha uma bicicleta. Não sei de quem ganhou: da mãe, do pai ou da madrinha. Só sei que ele tinha. Tinha e vivia por ali, subindo e descendo, indo e vindo, correndo e pedalando. Era dele. Eu gostava de ver e pensava em andar naquela bicicleta. Não sei se às vezes emprestava para alguém, deixava dar uma voltinha. Nunca pedi, nem vi, por isso não sei.

Um dia Toinho alardeou que ia vender a bicicleta. Botei olho grande e desejei. Imaginei-me dono e legítimo possuidor da magrela. Imaginei-me indo e vindo, subindo e descendo, correndo e pedalando. Falei pro meu pai comprar aquela bicicleta. Ele disse, não! não vou comprar. Dei um tempo, não insisti, talvez ele mudasse de ideia. Que nada.

Naquela época o mercado já vivia dias de concorrência acirrada. Por isso, quando voltei ao assunto, meu pai retrucou: nada de bicicleta! Vou comprar uma sanfona. Putz! Um conhecido do meu pai, que tinha uma sanfona de 80baixos (daquela bem grandona, tipo profissa) também botou placa dizendo: Vende-se uma sanfona. Foi o fim!

Sanfona? Como assim? Não houve tempo para a resposta. No dia seguinte, eis-me sentado numa cadeira tentando segurar aquele bicho pesado. Um lado da sanfona sobre a perna esquerda e o outro pendurado, quase batendo no chão. Era pra eu tocar?!. Tentei!!. Puxava para cima o lado dos baixos e, de tão pesado, deixava cair. Segurava com força o lado direito, o lado do teclado. Em pouco tempo fui apertando as teclas, foi saindo som e loguinho loguinho saiu parabéns pra você.

Tem futuro. Vai tocar. Vou tocar. Tenho futuro. Soletrei outros pedaços de música  e, de repente, já estava eu tocando uma música da igreja. Só do lado direito da sanfona, do lado melodia. Do outro lado eu não conseguia nada, apesar de ser canhoto, por causa do peso. 

A música dizia assim:

Andei tão longe do Senhor, assim eu quis andar. 
Até que encontrei o amor em seu bondoso olhar.
Seu maravilhoso olhar, seu maravilhoso olhar.
Transformou meu ser e todo o meu viver. Seu maravilhoso olhar...

Facilzinha de tocar. Melodia simples. Em casa todo mundo dizia: toca aquela. E aquela de novo. Que tal tocar outra... aquela. Aquela ficou batizada de "vivi tão longe". Toca vivi tão longe.. toca vivi tão longe... não havia outro pedido. De fato, eu vivia tão longe da bicicleta, era de dar dó. Meu pai sonhava com um Sivuca e eu sonhando com o Lance, vivendo tão longe... da minha bicicletinha. Ai meu Deus!.

Pronto. Estava acertado. No fim de semana iríamos pra casa do meu avô. Perto dali iria acontecer um culto. Eu iria tocar e a minha irmã iria cantar. Decidido. Meu pai, minha mãe e as outras irmãs estariam lá para assistir a Edson e Edna - a dupla! Foi assim. Chegamos a fazer duas apresentações. E foi só. Era bonitinho, os filhos da irmã Cleonice e de Seu Heleno tocando. Que fofo! Era bonitinho e desafinadinho e ruinzinho e todos os outros inhos. Mas era fofo, o que valia.

Que fofo que nada! Eu morria de vergonha e de cansaço. Aquilo era pesado demais. Eu não conseguia nem ficar de pé. Seria muito melhor ter uma bicicleta. Meu Senhor com seu maravilhoso olhar, me ajude a ter uma bicicleta. Cadê a minha bicicleta. Eu não tinha bicicleta, eu tinha uma sanfona. Será que era porque eu tinha andado longe do Senhor? Por que em vez de transformar o meu ser, o Senhor não transformou o ser do meu pai para ele me dar uma bicicleta? Não adiantava perguntar.

Esperei. Desisti da sanfona e nem lembro do que foi feito dela. Algum tempo depois ganhei uma bicicleta. Meu pai alegou, e eu concordei com ele, que não tinha comprado aquela outra porque era pequena demais pra mim. Logo, logo, ela estaria perdida porque eu iria crescer. Sério? Eu iria crescer? Jura? Que nada! Eu era pequenininho e franzino. Minhas duas irmãs eram mais novas e mais altas. Certamente mais bonitas, mais inteligentes, mais tudo. Eu era aquela coisinha minguada. Uma vez meu pai chegou a comentar: a quem puxou esse menino? Anão desse jeito!

Meu Deus! Será que sou anão? Não. Não sou anão. Anão é pequeno e tem a bunda empinada. Eu não tinha bunda, era magro feito um palito, a galera até tirava onda me chamando de tabica. Era pequeno, beleza. Mas não tinha bunda empinada, não poderia ser anão. Que alívio! Quero crescer. Pai, o que faço pra eu crescer? Quer crescer? Vou dar um jeito. Torou um pedaço de pau, acho que um cabo de enxada ou de picareta, pregou numa porta, de um lado a outro e disse: Se quiser crescer, fique pendurado aí. 

Eu não queria mais bicicleta. Eu queria era ficar pendurado e crescer. Doía os braços. Eu quero crescer, tenho que ficar pendurado. Ficando pendurado eu cresço. Não pensava em outra coisa senão ficar pendurado e crescer. Ganhei a bicicleta. Uma bicicleta grande. Talvez para me estimular a crescer. Eu quase não conseguia subir na magrela, mas eu tinha uma bicicleta. Pronto. 

Agora eu andava perto do Senhor. O Senhor tinha transformado meu pai, tinha transformado a mim e transformado o mundo. Eu estava contentão! Eu tinha uma bicicleta. Encontrei o amor em seu bondoso olhar, enfim. Um dia, andando por ali, nem tão longe de casa, fui atropelado por um caminhão. Meu Deus! Lá estava eu, outra vez, longe do Senhor. Quem anda perto do Senhor não é atropelado por um caminhão. Será que foi castigo? Valha-me Deus! Se eu estivesse sentadinho... tocando sanfona... não teria sido atropelado. Caraca!

Cheguei em casa com a bicicleta toda estrupiada. A roda quase quadrada, minhas canelas sangrando. A bicicleta ficou parada por uns quatro meses. Eu tinha medo de andar de novo e acontecer outra tragédia. Eu precisava ficar perto do Senhor, nada de andar de bicicleta. Cresci. Mas foi muito tempo depois, só quando comecei a jogar futebol. Meu pai esqueceu o Sivuca, eu esqueci o lance de ser o Lance e agora eu queria ser o Rivelino ou o Djalma Santos. Jogaria no Palmeiras. Meu pai falou. Tá falado! Assim será!

O tempo passou. A vida é assim, passa como um pisca-pisca, segundo a Emília.* Piscou e foi sanfona! Piscou e foi bicicleta! Piscou e foi futebol! Piscou e hoje é carro e bicicleta e vôlei, sem a menor pretensão de ser um Giba. Parou de piscar e se foi o  autor e mentor destas proezas, vítima de um assalto, há 24anos.

Tudo vai piscando e eu me ponho a lembrar e a escrever. Lembrar dele e destas coisas que vivemos juntos me bate um banzo danado. Mas ninguém morre de banzo. Digo de mim o que já disse um poeta "...se não morreu de banzo na vida, talvez morra de amor na morte..." Eis a esperança! Virou hipótese!


*A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem para de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso. É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais. A vida das gentes neste mundo, Senhor Sabugo, é isso. Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia. Pisca e mama. Pisca e anda. Pisca e brinca. Pisca e estuda. Pisca e ama. Pisca e cria filhos. Pisca e geme os reumatismos. Por fim, pisca pela ultima vez e morre.
- E depois que morre? perguntou o Visconde.
- Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?
- É.
                                                Memórias de Emília - Monteiro Lobato


Eu e Edna - Eu e Edna
Seu Heleno - Dona Cleonice e Eu

Sivuca - Eu - Giba
Roberto Rivelino - Lance Armstrong - Djalma Santos












terça-feira, 16 de abril de 2013

O Velho e o Novo se confrontam...


Segundo Aurélio:
Significado de Velho: adj. Que tem idade avançada; idoso; que existe há muito tempo; antigo; desusado; que se opõe-se ao novo. Significado de Novo: adj. Que existe há pouco tempo; acabado de fazer; moço, de pouca idade; visto pela primeira vez; recente; o velho e o novo se confrontam.

Eis o velho sentado num banco de praça a ver passar o tempo e o mundo. Olhar fixo no horizonte, alheio ao que lhe passa perto, posto a sonhar com o distante que se foi. Vida quase ida, lembranças vagas, futuro quase passado. Do que lhe resta, resta pouco. Era uma vez... ele sente. E se pergunta se esta sua vida zerada foi vida vivida de verdade ou se os passos de sua estrada resultaram em nada.

Recita Clarice, dizendo "sinto saudades da minha infância (A Infância é uma faca enfiada na garganta, da qual ninguém se livra facilmente - Incêndio), do meu primeiro amor, do meu segundo, do terceiro, do penúltimo e... e se põe a lembrar das peripécias amoroso-sentimentais-apaixonais de outrora. Vagamente lembra e só com muita dificuldade consegue concluir o verso daqueles amores que ainda vou ter" pois não mais acredita que tê-los seja possível.

Sorrindo perto dali vem o novo, andando engraçado, cheio de vida, anunciando promessas e prenunciando porvir. Olha tudo lá do alto, tal qual árvore frondosa, e de lá se regozija com as perspectivas e possibilidades de vidas por viver. Traz consigo as esperanças suas e do mundo, julgando-se o cumpridor das promessas.

Nada entende de mãos enrugadas, de semblante triste, de erros não cometidos. Também não entende o linguajar epitáfio, o lamento por não ter amado mais, ter errado mais (erros são episódios necessários), ter visto o sol nascer ou se pôr porque para ele são problemas pequenos. Amar mais ou amar menos? que diferença! Não compartilha dessas incertezas e inseguranças. Nem tampouco viaja carregando certezas ou seguranças. Apenas anda descalço pelas ruelas e avenidas da vida, viajando livre e solto, de velas içadas, jogadas ao mar, sem tantas perguntações.

Naquela tarde e esquina de praça, o velho encontrou o novo e o novo tentou entender o velho com a sua linguagem estranha e o seu discurso-do-que-já-foi, saudosismo, déjà vu. Naquela tarde e praça da vida o novo encontrou o velho e o velho tentou entender o novo com a sua linguagem e o seu discurso-do-que-virá, desprovido de saudosismo e déjà vu.

Mas queriam se entender e nesse afã, se desejaram.  E se desejaram e se apaixonaram. E apaixonados experienciaram um pouco de vida apostando que algo maior poderia resultar da alegria pueril de um e da melancolia senil do outro. Quiseram-se amar e até tentaram, acreditando em Rubem Alves: "o amor nasce na escuta". Mas não se amaram, "porque na não-escuta é que o amor termina".

É que na fala-escuta perceberam que o novo teria que acelerar o curso para alcançar o velho; e isto implicaria em atropelar algumas fases e redundar em algumas perdas. E que o velho teria que retardar o curso e esperar pelo novo; mas já não havia tempo.  Olhavam-se, queriam-se, desejavam-se... mas o tempo é soberano e a sua vontade se sobrepõe a qualquer vontade em contrário. Na verdade, o tempo e o curso da vida são como algumas catracas, só giram para a frente, só avançam.

Prementes dicotomias: um planeja a carreira, o outro conta os dias de aposentado; um não definiu o que quer da vida, o outro não tem muito mais o que querer; um ainda deve explicação ao mundo, o outro nada tem a explicar; um se apronta para festa e farra, o outro se apronta para deitar e dormir o sono dos que não vão ou dos que já foram".

Tantas coisas diametralmente opostas inviabilizaram a relação e a realização da viagem imaginada, do vinho, da música, da dança, da festa... e o paraíso não se materializou, enfim. Alguns atos e palavras mal interpretados, mal entendidos, não entendidos. Houve machucados e tristezas. De tanto, não lhes restou caminho, senão caminhar em direções opostas.

Não souberam tirar da sabedoria pueril de um e da sabedoria senil do outro, a sabedoria necessária para... 

E o velho sonhador sentou no Banco expectando que um dia por ali passasse algo mais afim, antigo, arcaico, demodé, ancestral, ancião, antepassado, vencido... Claro que isso é esquisito, mas "se você me achar esquisito, respeite também. Até eu fui obrigado a me respeitar"  - Clarice Lispector.








terça-feira, 9 de abril de 2013

Eu, Mme Deprê e o Por que..?


Não, não me pergunte "por que você está assim?". Esta é a pior pergunta que um deprimido pode ouvir. Eu não sei explicar. Só sei que é uma tristeza profunda e um vazio que me bate à porta e me remete a um lugar de dor onde eu não queria estar. Não há hora e tempo determinados para surgir e chegar, como também não há hora e tempo determinados para me deixar e ir embora. Não é constante; é tempos sim e tempos não, horas sim e horas não. Também varia de intensidade; às vezes doi mais, às vezes doi menos. Não tenho controle. 


Num momento ou dia qualquer, de repente, surge uma sombra e esta sombra transforma tudo em tristeza, provoca dor, sensação de inadequação, desejo de fugir de mim e de tudo, ir pra não sei onde. Dormir é difícil, acordar é amedrontador, trabalhar é tedioso, tudo se transforma num insuportável-igual-sem graça-tudo fuga, fuga do nada que leva a lugar nenhum. Machuca o peito, endurece a alma, desafia a euforia, empurra pra baixo, derruba, põe no chão, degringola, decreta a tristeza, o desespero e o desencanto.



Tenho a sensação de que num momento qualquer que eu não sei, algo ou alguém me tirou um pedaço. E a falta deste pedaço provoca o incômodo-ruim que me faz desejar o ir pra não sei onde e fazer exatamente não sei o quê porque eu não queria estar ali e também não queria estar lá e nem em lugar nenhum e não ser nada e inexistir. Ser eu mesmo, algo do que me orgulho algumas vezes, de repente se transforma num erro absurdo, digno de uma borracha que me apague pra sempre, para nunca mais lembrar, pra nunca mais ter sido. Nestes dias eu choro e choro e choro e fico de olhos nublados impedido pelas lágrimas de ver o sol e mar que tanto amo. 



Ainda assim, chorar tem sido o meu socorro. Sem a capacidade de chorar, seria impossível viver o vazio que ocupa todos os espaços. Chorar tem servido de socorro porque num choro quaquer, num dia qualquer, também indefinido e sem momento determinado pra chegar, o choro vai levando o vazio para um lugar que é não sei onde e sem explicação. Também sem explicação, lágrimas outrora turvas de repente parecem ir lavando e limpando a alma, fazendo retornar um hálito tênue de vida, devolvendo um pouco da respiração perdida. E como se se cumprisse a palavra-profecia do sábio: "o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem ao amanhecer", vou amanhecendo.



Amanhece e depois do choro vem aquele cansaço providência divina. Deito-me, fecho os olhos, cabeça sobre o travesseiro, respiro fundo e profundo e fico ali revirando memórias, procurando imagens. O sono perdido aos poucos retorna, a hora passa, o corpo descansa, os olhos enxugam e mais tarde acordo melhor quando abro os olhos e já com um quase outro olhar, pela janela já quase consigo ver o mar e o sol que tanto amo.



Embora ao redor tudo esteja o mesmo, tudo já não é mais o mesmo, eu já não mais o sou. Por dentro parece ter sido acesa uma chama, ainda fraquinha, que vai resistindo ao vento, titubeando, brilhando, me tirando aos poucos do escuro e me fazendo renascer um tantinho de vida. Levanto-me, saio do ninho, procuro algo pra fazer ganho as calçadas, a rua, o mar e mundo sob o sol e sobre o meu alívio.



Apresento-lhes, para terminar, madame deprê: atriz impetuosa e cheia dos direitos que decide hora e dia de atuação e e hora e dia de bastidores. Quando está no palco, me joga na cara uma pá de tristeza e me se enterra encostado ao muro. Quando decide recolher-se a minha alegria toma conta e tudo vale a pena. Impetuosa, esta tinha medonha não me deixa e não se vai, não me deixa e nem se morre, apropria-se e se estabelece ao seu bel prazer e se deleita na dor quando bem o quer. Livrar-me dela, apesar de muita luta, não sei.  



Livra-me dela não sei porque se  esta tinha tivesse corpo e cara ou se eu soubesse o porquê ou onde é se esconde, eu já lhe teria enfiado a faca e a estaca e extirpado do peito, do corpo e da alma. Ocorre que não sei, repito. Se é biológico, patológico, lógico ou ilógico, também não sei. Recorrer aos arquétipos, infância, adolescência, juventude, meia idade, seja lá o que for, não oferece resposta e eu também não sei. De alguma forma e em alguma proporção, todos encaram a tal madame, mas isso também não me oferece resposta satisfatória e outra vez, eu não sei.



Portanto, não me pergunte: "por que você está assim?" 



Não há resposta, nenhuma resposta cabe nesta pergunta, enfim. 



Sente-se. Sofre-se. Agoniza-se. Chora-se. Lamenta-se. Entristece-se. Alegra-se. E fim. 



Assim. Tem sido assim!





















quarta-feira, 3 de abril de 2013

Reencontro com a minha Veneza


Estou voltando, minha Veneza. Voltando para aconchegar-me em teus braços porque eu não aguento mais nem um minuto longe de você, sofrendo de tantas saudades. Quero olhar nos teus olhos, te abraçar, sentir teu cheiro e me morrer e reviver extasiado possuído pela dimensão do que sinto por ti. Quando nos abraçarmos, ainda pequenos, ruazinha-beco-viela, vamos nos transformar na metrópole dos sonhos, aquela que não cabe no mundo, porque infinitamente repleta de desejos e vontades.

Quando eu chegar, minha Veneza, trazendo ainda o frio lá de cima, quero-te beijar e receber de tua boca o hálito quente dos trópicos, que há tanto tu guardas desejando me entregar e eu ansioso desejo receber. Sim, eu me entregarei a ti como alguém que se joga das alturas esperando encontrar no solo algo que o ampare e o salve da queda e da morte. Sim, tu te entregarás a mim como se eu fosse o dono das asas ou tivesse o poder de te fazer voar e erigir-te às alturas e através do nosso encontro lá no alto nos livrássemos, eu da queda e da morte e tu da solidão e da espera.

Quero andar por tuas ruas curvas, retas, enviesadas e infinitas, minha Veneza, nas quais circulo sem precisar de mapa ou guia porque as minhas mãos já te conhecem inteira; quero mergulhar no teu mar e nos centígrados ou célsius de tua temperatura que me refrescam e aquecem o corpo e alma; quero sentir na pele o quente do teu calor, entregando-se ao prazer da minha chegada; quero apreciar-te a sombra do  corpo que a luz do sol desenha nos edifícios à beira mar; quero reconhecer a tua voz no barulho das ruas e admitir não ser possível nunca, nunca mais, ficar longe dessa música-sinfonia que só você sabe compor.

Mais tarde, minha Veneza, dormir na varanda deitado na rede, tal qual hiberna um urso outrora faminto e agora saciado: saciado da fome e do afã de te rever, de te encontrar, de te tocar, de te ter; do prazer imenso que é poder estar contigo e morar em ti como se fosse a primeira e última morada, eterna mas nunca a última vez. 

Em oração, minha Veneza, vou às igrejas agradecer aos deuses e ao único Deus porque você existe; porque em ti eu não encontro apenas o meu endereço, mas a minha residência fixa;  porque nos teus caminhos eu nunca me perco; porque em ti eu não sinto frio e em lugar de casacos ou muitas roupas tu me ofereces o agasalho dos teus braços; porque contigo as imagens são nítidas e coloridas e nunca foscas ou esbranquiçadas; porque tu me serves o prato o predileto e não somente aquilo que eu entendo do menu.

Amanha, quando anoitecer e eu puder rever tuas janelas com vista pro mar e a tua varanda com jarro, flor e rede pra deitar, deitarei tranquilo e dormirei minha Veneza. Anelo por esta tranquilidade porque sou agora outro, depois de ter visto alguns mundos e ter revisto alguns outros. Trago deles a certeza de Heráclito: eu não sou mais o mesmo. Estava certo o filósofo, quando dizia que um homem não toma banho no mesmo rio por duas vezes. Na vez seguinte, o homem será outro, a água será outra, o mundo será outro. Sim, sou outro, depois de tudo o que vi e vivi. Sou outro na certeza de que é impossível habitar em outro lugar porque o meu endereço só quer o teu endereço, o meu corpo só quer o teu corpo, o meu coração só se alinha ao teu coração, a minha mente só pensa em ti e a minha alma só dorme em paz quando dorme sob o teu luar e só acorda em paz quando vê brilhar o teu sol, minha Veneza.