domingo, 27 de outubro de 2013

Eu, o lixo, os livros e o mar


Minha experiência como catador de livros nos lixos me fez gostar de ler. Ou seria o contrário? não sei. Importa é que eu os catava. Saía de casa, minha mãe não sabia, não aprovava, e andava por ali, de olho em amontoados de papel. Revirava-os, à procura de um livro, revista, gibi, o que fosse. Lógico que os encontrava em mau estado. Levava-os pra casa, refazia-os, botava papelão e cola na capa, punha-os para secar ao sol e era assim, lia-os.
 
Uma vez achei a metade de um livro. Li e reli. Era uma história empolgante, eu queria muito saber como acabava, mas não consegui achar a outra metade, apesar de ter voltado àquele lixo algumas vezes. Guardei o desejo curioso de saber o fim da história e era tanto o desejo que até cheguei a sonhar com ela. Outras vezes repensei a tal história, imaginei vários finais, mas nunca cheguei a conhecê-la de fato.

Por algum motivo que talvez a Psicologia explique, esqueci nome, título e conteúdo do livro. Se lembrasse, poderia procurá-lo num dos sebos que costumo visitar, mas não lembro. Era um livro bom. E um livro bom é aquele que provoca desejo de ler mais e que nos faz sonhar, ir embora, viajar. Livro bom é o livro que nos faz brincar, tentar adivinhar o rumo da história, após ler cada página. Era assim que eu gostava de brincar, ia imaginando prováveis finais. Nunca acertava, claro, mas brincava disso.
 
Um dia achei um outro livro e na capa estava escrito: Física. Imaginei que se tratasse de Educação Física e me empolguei, achando que com ele eu aprenderia alguns exercícios que me ajudariam a ficar mais fortinho, crescer, deixar de ser baixinho, meu pesadelo da época. Mas não era nada disso, o conteúdo mais parecia matemática, cheio de fórmulas que eu não entendia. Guardei-o na minha tábua-pregada-na-parede-que-eu-chamava-de-estante, achando que alguém tinha errado ao colocar o nome Física naquela capa. Permaneceu-me incógnito por muito tempo e no meu julgamento, aquele não era um livro bom.
 
Um livro bom deveria ter figuras, mas não muitas. A Bíblia, por exemplo, tinha histórias fantásticas, mas lhe faltavam figuras e por isso era quase um livro bom. Hoje, um livro bom é aquele que muda de cor. Você o compra sem riscos, mas vai lendo, vai pintando, vai lendo, vai pintando, assinalando, fazendo marcas, comentários paralelos e... as páginas vão mudando de cor porque cada frase, cada sentença, cada ideia que surge, à medida que nos surpreende sentimos a necessidade de deixá-la marcada, em destaque.
 
O diálogo que acontece entre você e o livro é tão rico, tão prazeroso, que ele acaba todo pintado, todo anotado, cheio das frases suas, entremeadas nas frases dele. Até dá vontade de conhecer o autor, sentar do lado, segurar sua mão, falar da emoção e do aprendizado, agradecer pelo prazer, divagar com ele sobre ideias afins e das que discordamos, enfim.
 
Como se pode dizer que alguém escreve para si, que a presença, ainda ausência, do leitor não está influenciando? É impossível que ele não tenha pensado em mim, no que me causou, na hora de escolher esta, e não aquela palavra; esta, e não aquela outra sequência para as ideias; este, e não aquele outro jeito de escrever. Mentira, claro que ele pensava em mim, leitor, e no que me iria propor.
 
Pensar nesse livro-autor-livro que nos provoca, faz-me lembrar de um amigo querido, que também aprecia a leitura. Ele me contou que desde pequeno encontrava em livros descrições de como era o mar: grande, imenso, infinito, lar de baleias e tubarões. Mas uma descrição sempre lhe chamou a atenção: o mar era azul. Em todos os seus sonhos o mar era de um azul lindo, indescritível, um azul-mar. Meu amigo cresceu e um dia, quase garoto esteve numa praia, pela primeira vez. Sentado, pôs-se a observar e por muito tempo esperou o momento mágico em que aquelas águas verdes se transformariam no azul-mar descrito nos livros e com o qual tanto sonhou.

Livro bom tem história e tem também a sua própria história. Uma vez emprestei um livro e ele me voltou com um banho de café, na capa. A pessoa a quem o emprestei quis devolver-me um livro novo, sob mil desculpas, mas eu disse não. Eu quero livros assim, com histórias e com a sua própria história de capa encafezada, páginas amareladas, riscadas, rabiscadas, pintadas, cheirinho de mofo, relíquias encontradas em livrarias, no lixo, nas praças, na vida.

 

 
 
 
 
 

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